terça-feira, abril 26, 2005

Carta de Despedida

Hoje despeço-me de ti. Ao fim de muita procura encontro, por fim, o repouso que o tempo me havia prometido. Hoje abandono-te num canto sem sentir nada, apenas alívio. Quero dizer-te que apaguei, devagar e sem remorsos os quadros que pintei sozinho. Que me deixaste pintar sozinho…Não por tua culpa, mas sim minha. Obriguei-me a ver o que não estava a minha frente e fechei os olhos ao que gritava perante mim. Um dia, no início, pensei que te tinha. Que tinhas vindo para ficar. Que com esses teus olhos de cristal tinhas cortado as cordas que me pendiam os movimentos. Pensei tanta coisa na altura. Olhei-me como nunca o tinha feito e vi-te como nunca te tinham visto. Estavas lá em cima, muito acima do que eu poderia ter sonhado. Naquela altura dar-te-ia tudo, bastava que falasses com gestos e toques de seda. Bastava que fosses tu a pedi-lo. A sorrir, guardei-te um lugar em mim para que vivesses sempre lá. Mas os ventos mudam, nunca sopram da mesma maneira. O tempo também muda e eu também mudei. Abri um buraco no peito. Deitei tudo o que era teu lá, e fechei-o, abandonei-te dentro de mim, no vazio, para que nunca mais me voltasses a surgir a flor da pele só porque te sentia no ar. Como estava errado. Não te posso esconder dentro de mim. Aqui vais viver sempre. Aqui, neste lugar onde te guardei os sentimentos mudam, transformam-se, por vezes quase que se apagam, mas nunca morrem. Hoje eu quero, exijo, que estes bichos que se foram alimentando de mim morram. Entendo que não me queiras, entendo tudo o que quiseres, mas não me obrigues a ser consumido por pedaços de lembranças e cheiros de saudade. Vou tirar-te de mim. Se quiseres vem buscar o que sobra do que não houve. Faz como te der mais jeito. Foi sempre assim, não foi? Como te der mais jeito! Não quero dizer com isto que não errei. Sei que o fiz e admito. Mas não penses que irei carregar culpas que não são minhas. Levo somente o que é meu por direito e mesmo assim já é pesado. Agora tu estás a vontade para te decidir. Sempre foste tu a querer dar a última palavra, não foi? Pois bem, até hoje, neste momento, será à tua maneira. Deixo-te aqui o que era nosso. Era, já não é! Agora faz como te der mais jeito.

Adeus

segunda-feira, abril 25, 2005

A Metade e Eu

“A rapariga estava sentada a uma mesa numa esplanada sobre o mar. Vestia de branco e era loura, mas muito queimada do sol. Ao lado da mesa estava montado um guarda-sol giratório de pano azul que o criado veio regular, para acertar bem a sombra. O criado não perguntou nada e inclinou-se apenas e a rapariga pediu um refresco. Era meio da tarde e o sol batia em cheio no mar, que se espelhava aqui e além em placas rebrilhantes.” O céu estava límpido, e a luminosidade intensa, ao fim de algum tempo de fixação, acabava por ferir os olhos de qualquer um. O criado apareceu com o que a rapariga tinha pedido. Um refresco para aquela tarde quente. De cor alaranjada, o barulho do líquido, ao ser vertido para o copo de pé alto, quebrava o som das ondas do mar. Ela provou o refresco. Fez sinal de aprovação ao criado e este retirou-se. Ficou novamente sozinha. O areal, grande e dourado, abraçava as crianças, que entre gargalhadas e brincadeiras, corriam para a água, molhavam os pés, e voltavam para trás com o rebentar de uma onda mais feroz. Ao longe avistava-se um barco. Daqueles que percorrem o mundo. Daqueles que só sabem albergar marinheiros destemidos, que têm sempre sede de mais conquista. A rapariga fechou os olhos. Deixou que os restantes quatro sentidos tomassem conta das suas vivências. Lentamente, estendeu os pés em direcção ao sol. No instante em que o fez, começou a sentir o calor acolhedor a abraçar-lhe a pele exposta. Naquela posição de total relaxamento em que se encontrava, podia ouvir com clareza os sons que a rodeavam. Não se limitava somente a ver situações, a contentar-se com as visões que em flashes repentinos inundavam o seu campo óptico. Agora podia deliciar-se com tudo o resto: Sentia o ferver da areia e os gritos íntimos, dados pelos rapazes que jogavam a bola, ao pisar a parte mais seca do areal. Sentia o criado agitado a cumprir o seu dever. Sentia o rebolar das ondas com maior precisão e também o chocalhar das conchas que se aninhavam à beira-mar. Sentia o sabor a sal que um ou outro salpico lhe trazia de vez em vez. Sentia tudo o que estava a seu alcance e mais ainda. Vivia com tamanha intensidade cada som, sabor e cheiro a mar. A rapariga que estava sentada a uma mesa numa esplanada sobre o mar, e que vestia de branco e era loura, mas muito queimada pelo sol, sentia-se feliz.

Amélia

sexta-feira, abril 22, 2005

Infância

Nasci numa tarde de Primavera. Tive uma infancia feliz. Repleta de momentos de solidão, mas feliz. Habituei-me desde sempre a brincar sozinha, a imaginar sozinha , a ser fechada para o Mundo e a criar um Mundo só meu. Quando era pequena gostava de desenhar cidades em folhas A3, aquelas de papel cavalinho. Eram tão giras, tão completas. Casas, pessoas, caminhos, carros, lojas, nuvens, florestas...nunca me esquecia de nada. Houve um dia em que fiz um desenho desses mas em pequeno. A minha mãe guardou-o. Ainda hoje, quando quero recordar, basta ir ao quarto dela e ele está lá. Um pedaço de mim.
Fui crescendo. Continuava no meu Mundo. Construi primeiro paredes, depois muralhas à minha volta. Gostava das tardes quentes. Gostava de livros sobre História. Gostava de imaginar como era o antigamente. Sonhava muito. Ainda sonho, mas de outra forma. Lembro-me da hora de dormir. Dormia sempre com um boneco a meu lado para nao me sentir sozinha. Mas nunca era o mesmo boneco todas as noites, porque para mim, eles tinham vida, eram como eu, e escolher só um para ser o meu companheiro de sonhos não era justo. Assim, ia variando para que nenhum ficasse chateado comigo. Chegou mesmo ao ponto de, em alturas especiais como o Natal, dormir com todos eles. Gostava tanto desses momentos.
Lembro-me, como se fosse hoje do meu primeiro dia de escola. Levava um vestido amarelo, escolhido pela minha mãe. O meu primeiro dia, ao contrário do que é costume, foi cheio de euforia e brincadeira. Não chorei quando me deixaram sozinha na nova escola, pelo contrário, estava tão feliz por estar rodeada de meninos e meninas como eu, que , de forma fluida e sem dar por isso, começei imediatamente a fazer amizades, algumas das quais duram até hoje.
Durante a Primária fui sempre constante. Com isto quero dizer que nada de especial aconteceu. Era bem comportada, no recreio brincava até nao poder mais. Tinha amigos, fazia birras, gostava de doces principalmente rebuçados. Gostava das musicas daqueles grupos juvenis que surgiram na altura. Cantava muito, brincava ainda mais. O tempo foi passando. Mas desses anos há um momento de rebeldia que gosto sempre de recorda. Na sala de aulas estavamos sentados. Eu estava sempre ao lado de um amigo meu (amigo até hoje). Um dia, já não me lembro a que proposito, chateamo-nos durante uma aula de expressao plastica. Essa era uma daquelas aulas em que faziamos colagens e picotados e pintavamos desenhos na esperança que não ficassem esborratados devido a um descuido qualquer. Como eu ia a dizer, lá estava eu e ele a meu lado, os dois a discutir. Ele levantantou-se para fazer queixinha à professora (nunca entendi bem o significado de "fazer queixinha"...até que ponto o relato de um acontecimento é queixinha ou não?) Enfim...eu chateei-me tanto que, com raiva infantil, peguei num tubo de cola e espremi-o, com toda a força que tinha, para a cadeira dele. Depois? Calei-me, virei-me para o meu lugar e esperei que ele chegasse. O que acontecu depois é previsivel. Ele voltou para o seu lugar, sentou-se em cima da cola e finalmente, ao fim de muita confusão eu fiquei de castigo. Apesar de todos estes momentos, continuei a criar o meu Mundo, umas vezes mais vivo outras mais apagado, mas sempre lá. Há tantas outras coisas que poderia contar. Mas de todos esses episódios, pensamentos e sentimentos, uns quero guardar só para mim e outros quero partilhar-los quando achar que o devo fazer. Até lá, fica aqui a minha Infância.

p.s- Há tanta coisa que te quero dizer, que as vezes penso que vou explodir. Só quero que saibas que cada vez tenho mais a certeza de que é sintonia.

Obrigado.

Amélia

domingo, abril 17, 2005

Para ti? Nada

O pensamento não pára
A memória nunca se enche.
Um furacão cresce, lá longe,
Desamparado...
Sem chão...
Cresce sozinho, cresce em vão.
Para ninguém.
As velas vão esperando por um sopro só
e nelas vive o desejo dos milénios
(agora cobertos de pó)
que, lentamente, formam a miragem da minha esperança.
O meu coração ama de forma errada, sem rumo,
mas agarrado com toda a sua força
a uma saudade condensada
que, sem mágoa, vou pintando na minha aguarela em tons de azul.
Enquanto o faço, vou pensando...
Quantas vezes a vontade fez de mim escrava
E me atirou para o chão onde me tornei larva,
em luta pela vida.
Quantas vezes me deixei seduzir por ouros e diamantes
E quantas outras vezes me arrependi
E de olhos lacrimejantes, implorei para voltar atrás.
Perdi-me numa rua qualquer
Onde me tornei mulher mas também pedinte faminta e sem lar
Perdi os sonhos de menina
Desapareceram, mas deram lugar
à vontade
quase necessidade, de estar
Simplesmente, aqui .

Sabes de que é feita a vida?
De nadas inconstantes.

Amélia

sexta-feira, abril 08, 2005

Tempo

As batidas suspensas no ar procuram o meu corpo. Penetram-no sem pedir licença e fazem com ele as obedeça. As minhas pulsações já não são minhas. Pertencem agora ao mistério do som que me rodeia. Mistério esse que invadiu o meu órgão mais intimo, aquele que bombeia a alma até cada canto escondido que existe em mim. Inspiro lentamente, e enquanto o faço, levito no meio da cidade vazia. Ninguém está na rua e mesmo se estivesse, ninguém me poderia ver. Sem dar por isso, a minha casca alcançou um outro patamar acima do solo cheio de qualquer coisa que não sei decifrar. Uma tristeza profunda invade-me o coração. O tempo escorre-me das mãos vazias e mesmo quando o tento agarrar, acaba sempre por ser mais rápido que os meus movimentos frágeis e infantis. Como gostava de ser maior para que agora, neste exacto instante, te pudesse ver com outros sentidos. Como gostava de crescer por dentro para me tornar visível aos olhos do Mundo que não me conhece. Como gostava de ser mais forte para te prender e guardar junto a mim até ao infinito. Agora, neste exacto instante em que eu levito, gostava que fosses meu Tempo.

Amélia

terça-feira, abril 05, 2005

Antes...

Antes eramos mais. Ainda me lembro desses tempos, quando o calor apertava e entre risos nos dirigiamos para um lugar mais fresco. Ainda me lembro como nos conheciamos todos, um por um, e como davamos a vida uns pelos outros sem medo. Havia um laço forte e apertado que parecia indestrutivel, entre nós. Uma ligação química, uma união familiar. Mas de todos é de ti que me recordo mais. Ainda me lembro dos olhares timidos e do tocar casual dos nossos pés por baixo da mesa no café de sempre. Ainda me lembro do teu calor. Dos pensamentos simultaneos que nos surgiam, das cartas que me escreveste e também de todas aquelas que pensavas escrever. Ainda me lembro de tudo. Ainda me lembro de quando eramos mais...

Eles foram embora. Um a um deixaram os sítios que já tinhamos conquistado. Disseram adeus e foram sem olhar para trás para que eu não lhes visse as lágrimas. Partiram com um sonho no bolso. Com vontade de encontrar o mundo. Partiram porque tinham de partir. Tu também foste embora mas não partiste. Abandonaste-me. Não foste porque era destino, mas sim porque a minha presença incomodava a tua. Saiste de mim e foste viver para outro lado qualquer. Deixaste-me. Mesmo assim, ainda guardo o espaço que ocupavas dentro de mim. Sim. Enquanto existir, vou guardar sempre o teu lugar. O teu e o de todos os que me enchiam de amizade profunda enquanto me olhavam como irmãos. Sim. Antes eramos mais a ir para um sítio fresco quando o calor apertava. Antes eramos mais... agora sou só eu.

Amélia

domingo, abril 03, 2005

Memórias

Acordara sem frio. Pela primeira vez em vários meses regressara do sono sentido o calor do quarto. O dia estava igual a sempre. Igual a todos os outros, mas lá fora o vento que se fazia ouvir debaixo dos lençóis, trazia-lhe à memória aquele nascer do dia.

Depois de uma noite de folia, vivida como se fosse a última, deixaram-se levar pela rotina comum e embalados pelos abraços e cantorias, caminharam até ao ponto mais alto. Lá, a vista deslumbrava qualquer um. O reflexo nos olhos deixava adivinhar a verdade Universal. Não importava as vezes que lá tinham ido, cada uma era especial, diferente. Cada uma se fazia acompanhar da magia, que alguns pensavam não ter, condensada num ponto, infinitamente pequeno na Terra, que chegava a atingir tamanhas pressões acabando sempre por explodir. Apesar de tudo, e mesmo antes de chegar ao céu, como num Adeus profundo, brindava a todos os que queriam ver, com luzes e palavras, proferidas outrora por deuses pagãos. Todos sentiam o mesmo. A Irmandade dos Livres corria. Tocava o vento com a cara, dançava sons vindos do fundo e gritava com toda energia que girava em volta. Acima de tudo sorriam, sorriam sempre, nem que fosse unicamente por dentro. Momento só deles. Momento que fortalecia, que lhes sussurava ao ouvido, dia após dia, ano após ano, que o que sentiam viveria para sempre. Umas vezes escondido pelo dia a dia, outras transformado pela saudade, mas resistiria até ao infinito dos tempos, como um sinal marcado na carne imortal. Como um pacto de sangue.
Num culminar das emoções, já cansados pela alegria, sentaram-se unidos e num esforço final, como quem dá a luz o primeiro filho, fizeram brotar do interior das almas cheias de vida, um Sol grande, acolhedor, cujo calor se igualava ao sentido no momento.

Sorriu com as recordações. Levantou-se da cama agora fria. Vestiu uma roupa qualquer e saiu de casa sem olhar para tás.
Amélia

sábado, abril 02, 2005

Sentidos Imperfeitos

Ao descansar os sentidos numa noite como outra qualquer, tento compreender o que não me é permitido. Penso em tudo sem sentido. Freneticamente, imagens reflectidas no chão do meu sonho ganham vida. Ganham tudo o que lhes posso dar. Sem pensar, penso porque é inconstante o temperamento de todos os que sonham como eu. Todos os que, mesmo entendendo factos que não lhes pertencem, esperam pacientemente, entre a escrita cinzenta num dia qualquer, que o portão divino os abrace fortemente e embale com melodias de saber infinito. Orgulho-me de todos os guerreiros que não baixam os punhos, nem a cabeça, nem a sede que os invade dia após dia. Orgulho-me de todos os que pensam. Bem ou mal, que diferença faz? Nada é perfeito e a sua maior essência está em saber que nada existe. Perfeição é tudo o que nos ronda com tendências imperfeitas. Tal como o pensamento. Por isso, e só por isso, sinto, sem sentir, que o silêncio da cidade que invade agora o meu sono, não passa de pão que alimenta o meu amanhecer, nutrindo a minha certeza de que agora será sempre o momento.

Amélia

sexta-feira, abril 01, 2005

Intimidades

Hoje disseste-me um segredo ao ouvido. Quando menos esperava, chegaste e denunciaste-te perante mim. Querias que eu te visse com outros olhos e deixasse, de uma vez por todas, de sonhar connosco. Não sei se era realmente essa a tua vontade, mas foi assim que o entendi. Pelo menos foi isso que me fizeste acreditar, quando me impediste de proferir uma palavra em minha defesa. Não quiseste ouvir os meus argumentos e afastaste-te de mim sem sequer olhar para trás, como costumavas fazer. O que tu não sabes é que ao me afastares, criaste em mim uma necessidade maior de pensar em tudo o que te preenche. Tenho a certeza que quando descobrires a crescente falta que fazes, me vais atirar à cara passados que já não são meus. É tão típico de ti. Não entendes como cresces cá dentro a cada conversa que não temos, a cada olhar que não trocamos, a cada beijo repleto de carícias que não sentimos. És tão grande em mim e eu, estupidamente, só o descobri quando me disseste o segredo maldito que te fez caminhar para longe. Anseio poder dizer-te um segredo também. Pode ser um qualquer, desde que passes a sentir o que eu sinto, para que no fim te faça a falta que tu agora me fazes. Não me interpretes mal. Não te vou fazer chorar. Acredita que só te quero largar no meio do nada por um instante (seria incapaz de te deixar lá para sempre...). Quero só que entendas; o lugar que julgas vazio no mais intimo de ti, está preenchido com o mesmo que existe no lugar que eu julgava vazio no mais intimo de mim. Afinal, não somos mais que cumplices da nossa intimidade.

Amélia