domingo, maio 29, 2005

As vezes

As vezes, é estranho encarar o desconhecido, o incompreensível e o metafísico. As vezes é difícil sair do sofá, mesmo quando na televisão, que esta estrategicamente posicionada a sua frente, não passa nada de interessante. As vezes, começa a chover quando estamos a caminho de casa. A chuva deixa-nos irritados, porque pensamos sempre que se não nos tivéssemos atrasado, já estaríamos em casa antes de ter começado a chover. As vezes, ligamos o rádio e está a dar uma música qualquer. Uma hora depois, voltamos a ligá-lo e a mesma melodia está no ar. Repete-se infinitamente até que alguém componha outra música do mesmo género para ser ouvida até a exaustão. As vezes, vamos tomar café com um amigo, quando na realidade nos apetece estar noutro lugar. Nessas alturas, beliscamos o nosso braço para tomar atenção a conversa e não parecermos desinteressados. Fazemo-lo, cada um a sua maneira, mas quase sempre sem sucesso. As vezes, colocamos o despertador para uns minutos mais cedo só para podermos fazer preguiça na cama, mas acabamos sempre por perder a noção do tempo. As vezes, dizem-nos coisas que não gostamos mas não respondemos de volta. Um dia depois, surge-nos a resposta perfeita, mas nessa altura já é tarde. As vezes, fazemos tanta coisa que não devíamos fazer e outras vezes, não fazemos nada.
Mas…
As vezes sabe bem aceitar o que não se compreende. É como uma aventura pelo desconhecido. Não importa o final, somente a excitação que nos leva a agir, a dizer frases que nunca diríamos, a criar situações engraçadas que nos façam rir e a viver o momento tão intensamente que acaba guardado no cantinho das memorias. As vezes, naqueles dias em estamos cansados, sabe bem não fazer nada descaradamente. Ser um autentico Koala Europeu. Dormir, comer, deitar, levantar, comer e dormir. Voltar a nascer de novo, para que num futuro próximo possamos estar totalmente acordados perante o Mundo. As vezes, quando chove e estamos na rua, sabe tão bem. Porquê? Porque logo a seguir vamos para casa onde nos espera um banho quente, acolhedor, que nos embala de tal forma que quando vamos dormir não temos de esperar pelo sono. As vezes o rádio passa músicas repetidas. Mas quantas dessas vezes não são musicas que nos fazem sentir bem. Tão alegres e ritmadas que as vamos cantarolando enquanto nos preparamos para mais um dia. As vezes não temos vontade de ver os amigos, e mesmo assim eles conseguem pôr-nos fora de casa. Sem dar por isso, um encontro indesejado torna-se numa tarde memorável e cheia de gargalhadas. As vezes perdemos a noção do tempo, mas ao fim de semana é tão bom olhar para o relógio e pensar “ se fosse Segunda a esta hora já estaria de pé”. As vezes dizemos coisas que não queremos e ouvimos outras tantas que não gostamos, mas há sempre aquelas vezes em que tudo nos sai no instante exacto. Expomos a nossa opinião da forma mais compacta e clara que, para além de surpreendermos os que nos rodeiam, também ficamos espantados. As vezes...tantas vezes…

Joana

quinta-feira, maio 26, 2005

Carta para a Amélia

Já me tinhas contado como iria ser, mas eu não pensei que chegasse tão cedo este dia. Apesar de inesperado, faço o que sempre te prometi fazer e o que tenho a certeza que gostarias que eu fizesse. Sei que partiste com saudade do que ficou, mas também vi em ti uma imensa vontade de ir para o sítio que outrora tinha sido teu. Voltaste para casa e voltaste feliz. Esse é o único motivo que me faz ficar a sorrir para ti, enquanto te vejo acenar-me debruçada na janela do comboio já em movimento. Não vou mentir e dizer que pensarei em ti todos os dias. Não me vou iludir cultivando esperanças de que voltes brevemente. Vou simplesmente, nos dias em que a saudade apertar, escrever-te uma carta a recordar os bons momentos. Unicamente os bons momentos. Durante o tempo que estiveste, sempre sentada ao pé de mim, foste tudo o que podias ser. Deste tudo de ti. O ombro, a gargalhada, a imaginação, a nostalgia. Até o silêncio me deste quando era necessário. Juntas, fomos tantas vezes para a janela do meu quarto, lembras-te? Ficávamos lá a olhar para a rua. Víamos as pessoas passar e criávamos histórias rebuscadas sobre elas. Nunca me vou esquecer daquela noite quente em que, ao olhar o céu, vimos um avião passar e juramos que parecia uma baleia dos céus. A partir desse dia o céu passou a ser o nosso mar. Rimos que nem duas crianças no chão frio. Eu lembro-me tão bem de todos os detalhes, mesmo daqueles que nunca cheguei a partilhar contigo. Foram poucos, mas a verdade é que também guardei pedacinhos só nossos no meu no livro de recordações. Aposto que fizeste o mesmo. Espero sinceramente, que tenhas o tenhas feito, para que no futuro, quando quiseres trazer a memoria estes momentos o possas fazer embalada numa nostalgia acolhedora. Desculpa-me as vezes que não te quis ouvir e também todas aquelas em que, com a minha borracha branca, te fui em tentativas frustradas, apagando de mim. Desculpa-me os dias em que me deixei levar pela corrente mais forte e mesmo quando tentava nadar na direcção oposta, ela empurrava-me constantemente até ao desconhecido. Acredita que por isso comprei uma bússola e trago-a comigo para todo o lado. Agora sei sempre o caminho de volta.
Neste instante, em que já mal te vejo porque o comboio vai longe, acho que já deves estar a ler esta carta. Amélia, minha Amélia, vou ter tantas saudades tuas, tantas que, apesar de teres acabado de partir, já me inundaram violentamente. Espero que um dia me venhas visitar. A tua cadeira, aquela que costumavas usar quando te sentavas ao pé de mim, não vai sair do lugar e vai estar sempre vazia a tua espera. Escreve-me também da Terra do Nunca. Manda-me abraços pelas baleias que passam no céu e lembra-te de nós. Lembra-te de nós sempre que te apetecer, mas acima de tudo, lembra-te somente dos bons momentos.

Joana

quarta-feira, maio 25, 2005

Histórias Casuais IV

Lembras-te do que te queria dizer? Eu já não me lembro.

Amélia

Capítulos Meus I

Já era tarde. É sempre tarde demais para mim. Entrei no carro e antes de arrancar a Rita foi até à janela, que estava aberta, e deu-me beijo meloso de parabéns. Tinha acabado de comer torradas e ainda não tinha limpo a boca. Ela gosta de muito de torradas e eu também gosto, por isso mesmo, só as comemos ao fim de semana, para que nessa altura nos saibam melhor do que nunca. É uma tradição cá em casa nos pequenos-almoços de Sábado.
Fiz-me a estrada, mas já era tarde. Não sabia ao certo que caminho seguir e fui sempre em frente. Como era agradável andar na estrada a esta hora da manha. Sentia-me como se ela fosse só minha. Sem trânsito, sem buzinadelas nem filas, só o alcatrão a fumegar e a paisagem plana a cheirar a Verão. Liguei o rádio para me fazer companhia. Estava a dar uma música antiga do meu tempo. Enquanto acelerava pela solitária faixa da direita, ia pensando com nostalgia. Antes era o meu pai a recordar as músicas do seu tempo quando íamos de viagem. Agora é a minha vez. Tal como ele faria, vou cantarolando desafinadamente um refrão qualquer que me ficou no ouvido durante anos a fio. Olho para uma placa que esta a poucos metros de mim. Uma estação de serviço aproxima-se. Quando ela chega faço um desvio e aproveito para beber um café e descansar uns minutos.
Peço o café e vou sentar-me numa mesa junto a parede. Da minha mala verde, que ninguém gosta, tiro um pequeno papel já amarelecido pelo tempo. Guardo-o há tantos anos e mesmo assim, neste instante, podia fazer as contas para saber a exactamente quanto tempo o guardo. Mas isso não é relevante. Abro-o com o mesmo cuidado que me levou a guarda-lo, na caixa que tenho debaixo da cama, durante décadas. Nele está uma morada. Ainda me lembro do dia em que ma deram. Olharam-me nos olhos e debitaram no ar o nome de uma rua, um número de uma casa e uma cidade. Nunca me disseram para que iria servir tal informação. Eu também nunca perguntei. Mas hoje, no dia combinado, sai de casa deixando a Rita para trás, só por um instante, eu sei que ela fica bem, e fiz-me a estrada.

Amélia

sexta-feira, maio 20, 2005

Histórias Casuais III

Não a ves?
Lá vai ela a olhar para o chão.
A pensar no que já passou.

Não a ves?
Lá está ela ao pé do cão.
Assustada porque ladrou.

Não a ves?
Lá anda ela no barracão.
A praguejar tudo o que lhe dou.

Não a ves?
Pois não, já vai dentro do caixão
E agora acabou.

Amélia

quinta-feira, maio 19, 2005

"Perigo de Explosão"

"É melhor fechares os olhos,
é melhor fechares os olhos meu amor,
antes que o mundo inteiro seja um incendio.
Os ventos todos fechados,
os ventos todos fechados dentro da minha mão.
Quantos ciclones queres?

Procurava
nos outros
a ternura,
mas so encontrava
ossos cheios
de odio
e nitroglicerina.

Aquele poema,
ao contrario dos outros,
tinha polvora.
Só lhe faltava o rastilho.
Eramos rebeldes por sistema,
a sonhar uma revoluçao por dia.
A tardinha,
na esplanada,
bebiamos um cocktail molotov.

O terrorista,
apaixonado,
carregava
as escondidas
uma bomba relogio. Era no peito.
Era o coração."

Amélia

terça-feira, maio 17, 2005

Jardim de Corpos

Era um jardim de corpos
tão intenso que o guardei só para mim durante uma vida inteira.
À noite, todas as noites...
naquele instante exacto antes do sono vir,
a sua imagem invadia os meus sentidos
sem nunca me deixar dormir.
Explodia-me os sentimentos,
os momentos estáticos de um respirar antigo,
mas acima de tudo criava em mim
uma revolta tão intensa
por não passar da imagem de um simples jardim.
Nele, sobre um chão vermelho de fogo pairavam,
numa igualdade de diferenças,
corpos deitados num caos de perfeiçao.
De olhos fechados e respiraçao suspensa
por um fio de seda, tão fino e tao fragil como uma cançao.
Ficavam ali, almas imperturbaveis,
criando um quadro onde o real e o imaginário
se fundiam em toques, em magia e harmonias inimagináveis.
No meio do jardim batia um coraçao composto por metades.
Duas unicas partes criavam o todo.
Dormiam envolvidos um num outro,
embalados por um silêncio e por uma paz,
que batia badaladas de sedução pura
sem nunca, mas nunca, deixar para tras
a verdade que aos meus olhos aparecia agora,
finalmente nua e crua.

Amélia

quarta-feira, maio 11, 2005

Carta ao Vergílio

Querido Vergílio:

Nem sempre sabemos o que dizer. Alias, nem sempre temos que dizer qualquer coisa. Mas neste caso, neste instante, apetece-me conversar infinitamente contigo. Apetece-me contar-te segredos. Apetece-me mostrar-te que afinal somos bem mais parecidos do que julgamos ser.
Tudo nunca passa de uma descoberta. Viver é descobrir, é cometer erros e querer dia após dia cometer ainda mais. Eu tenho sede de vida. Hoje seria capaz de gritar tão alto a minha felicidade inocente, que até tu, que moras longe, a poderias cheirar. Vou vivendo um dia de cada vez, mas não como se fosse o ultimo dos dias. Porque esse é para as despedidas e eu não me quero despedir. Um passo de cada vez. Não corro porque o caminho é grande e não me posso dar ao luxo de ficar cansada a meio. Vou, por isso, andando devagar. Vamos, por isso, vendo a paisagem os dois. Vamos pensando nas casas que queremos comprar e em todas aquelas que nunca comprariamos, não é? Vamos sonhando aos poucos. Vamos chorando aos poucos, rindo aos poucos, amando aos poucos, lembrando aos poucos. Vamos passando a mensgem por quem se cruza conosco. Amuamos, discutimos, mas vamos, sempre aos poucos, vivendo um dia de cada vez.

Amélia

terça-feira, maio 10, 2005

Histórias Casuais II

Embora soubesse que não ias estar à minha espera, tentei sempre captar a minha ilusão mais intima, para que nunca parasse de cá vir. Corri meio mundo embebido na hipotese de te rever, mas nunca soube quem eras ao certo. Nunca quis saber. Nem nunca vou querer saber. Vejo-te desfocada a minha frente e corro na tua direcçao porque te vejo desfocada. Corro porque não te conheço. Impulsionas a adrenalina no meu sangue atraves do teu olhar. O teu porte merece a minha atenção. Merece que te escreva, merece que te sinta e que te respire a cada passo.

***

Hoje cheguei a ti. Como um Rei corri até ao infinito onde cortei a meta. Fiquei cansado ao ponto de me faltar o ar, mas quando te olho agora do trono, que é meu por direito, e te vejo ao longe a olhar para mim também, fico feliz. Cheguei onde queria. Estou maior por isso. Sem saber, um sorriso vai aparecendo ao longo da minha cara. Inconsciente sorriso. Começaste a caminhar em minha direcçao. Agora sim, é a tua vez de vir até mim. Aproximas-te. Começo a deixar de te ver desfocada à medida que vens andando. Cada vez mais perto. A teu pedido, ajudam-te a subir para o meu trono, onde me será dada a recompensa pela corrida. Sobes. Eu deixo que tu subas. Chegas bem junto a mim e finalmente vejo-te por completo, sem distorções. Afinal...és feia. Esse teu hipnotizar deixa-me indisponsto. Cheiras mal. Não suporto estar ao pé de ti. Não te suporto de todo...Detesto-te. Como nos velhos tempos, impulsionas a adrenalina no meu sangue, mas agora somente porque me metes nojo. Salto de cima do meu trono (já não me serve) e reinicio a minha corrida...no sentido oposto a ti.

Amélia

quinta-feira, maio 05, 2005

Histórias Casuais I

Fala-me. Fala-me muito. Enche-me de histórias mirabulantes que insistes em colar ao teu passado gasto. Enche-me de risos com a excitação crescente da tua voz rouca. Fala-me até te cansares, até se esgotar a tua imaginação infinita. Faz-me rir um dia inteiro. Faz-me não pensar em mais nada, só no teu falar e no café que, com o passar das horas, vai arrefecendo em cima da mesa.
Grita-me. Grita-me muito. Esvazia os teus pulmões em sopros sonoros de raiva comprimida. Mostra o mais cruel de ti equanto me maltratas com palavras que vais expelindo entre um suspiro mais profundo. Grita-me de frente e devora o meu ego. Diminui os meus sentidos com essa tua furia triste. Liberta-te aos poucos dessa maneira.
Cala-me. Cala-me quando achares que o deves fazer. Nunca me deixes divagar por solidariedade. Faz-me silenciar os sentimentos e as recordações mais longinquas sempre que elas te fizerem sentir mal. Não me deixes tornar insuportavel e entediante para ti. Cala-me sempre que for preciso.
Olha-me. Olha-me muito. Vê-me de todas as prespectivas. Sobe ao cimo de um predio e observa-me de topo. Abre os olhos e mantem-os assim até secarem. Olha-me enquanto les um livro sem interesse, alimentando uma conversa casual contigo mesmo. E ao fim do dia, quando te sentires cansado...Fecha os olhos e olha-me outra vez.

Porque eu...

Já nao te falo. Perdi a vontade de o fazer. Agora prefiro beber o café que me aquece a garganta arranhada pelo frio.
Porque eu já não te grito. Deixei de elevar a voz por qualquer coisa. Agora, nesses momentos mais intimos, contenho-me de forma responsável e cautelosa.
Porque eu já nao te calo. Passei a deixar-te falar tudo de uma so vez. Sento-me e espero que fiques com falta de ar. Aguardo o teu cansaço pacientemente. Enquanto o faço, vou recordando que já nao te falo, nem te grito e muito menos te calo. Enquanto o faço vou pensando que por não te falar, nem te gritar, nem te calar te vou olhando cada vez menos...

Amélia

terça-feira, maio 03, 2005

Menina

Ontem vi a infantilidade dela. É tão pequena, tão menina, mas ao mesmo tempo vejo que já lhe mostraste tanto. Aposto que não a ves como eu vejo. Pelo menos não a vias assim. Agora já não sei qual a tua opinião, embora as vezes, com esse teu jeito aberto, feliz e sincero, vás deixando escapar, entre frases soltas, sentimentos antigos. Ontem fiquei a pensar nela. Deve ser bonita. Deve ter personalidade. Mas mesmo assim, não deixo de a ver como uma criança. Aposto que faz birras por coisas desnecessarias e pequenas, aposto que quando não dizes o que ela quer, apesar da forma arrebatadora como falas, vai amuada encostar-se a um canto qualquer. Aposto que deve sorrir muito e deve ter um olhar cheio de brilho. Aposto que te derretias quando ela telefonava ou quando te acordava daquele jeito tão seu. Aposto que ela é irrequieta e cheia de vida e aposto que agora, apesar de tudo, sente a tua falta. O espaço que ocupavas está vazio mas não foi por querer. Aconteceu... Aposto que, mesmo assim, o tentou preencher, e ainda tenta, mas até hoje sem sucesso. Continua vazio... Aposto que ao fim de semana se obriga a alterar a rotina que era vossa. Já não espera por ti. Agora aposto que convida uma amiga mais intima para um café.
Quanto a ti... Tenho a certeza que ainda pensas nela. Sei-o pelo forma como, ao tentares disfarça-lo, o acentuas ainda mais. Tenho a certeza que no meio do teu dia a dia cheio de vida e recheado de histórias, escondes uma nostalgia noturna. Uma nostalgia, que antes de adormeceres, te leva para longe, para um fim de semana antigo, onde ela, com o sorriso nos labios e o brilho nos olhos te espera ansiosa por dizer " Já tinha saudades tuas...".

Amélia